-Who
is he? –questionou-me, esboçando um sorriso inocente.
-Matias.
It’s my favorite one.
-He looks
cute and lovely. –elogiou, aproximando-se. Fez-lhe uma festa rápida e depois, fez-me uma a
mim no braço que me fez arrepiar. –Oh baby... –olhou-me nos olhos. Devolvi-lhe
um olhar ferido. Abraçou-me e beijou-me de seguida. Nisto fomos interrompidos
pela porta a bater.
-Sim?
–perguntei.
-O
pai está a dizer que já é tarde, para irem comer qualquer coisa. –informou
David. Na verdade eram já dez da noite.
Descemos
à cozinha. Esta divisão era bem apetrechada e estava decorada de cores alegres
que contrastavam com o meu estado de espírito, negro como a noite de breu.
-Shann,
what do you want to eat? There are cereals, bread and as far as I can see,
soup. –expliquei abrindo o frigorífico e observando o interior.
-I
don’t know. What are you eating? –replicou.
-I’m
not eating anything now. I’m
not really hungry. –tudo o que menos me apetecia naquele momento era comer.
-No
way! You have to! –ordenou.
-Shannon,
I do not want. –repisei.
-Rita,
that is not an attitude!
-I
don’t care!
-At
least cereals.
-Shannon,
I…
-Rita!
–interrompeu firmemente, decidido a fazer-me mudar de ideias.
-Fine!
–cedi, suspirando.
Depois
de terminada a refeição, Shannon encarregou-se da louça suja e fomos
deitar-nos.
Estava
zonza, estoirada, como se tivesse andado à luta e tivesse perdido. Doía-me a
cabeça. Ainda permaneci cerca de uma hora às voltas mas lá acabei por
adormecer.
O
corpo seria-nos entregue na manhã seguinte, sendo o funeral ao fim da mesma,
por decisão de David que foi quem tratou de tudo. Deste modo ficaria tudo
resolvido mais depressa, o que facilitaria as coisas.
-Rita,
Rita? It’s time to wake up. –senti um toque delicado no braço. Virei-me para o
outro lado e tapei a cabeça com a almofada branca. Shannon, que me havia
trazido o pequeno-almoço que estava poisado na mesa-de-cabeceira (e que eu
ainda nem tinha visto), revirou os olhos e insistiu rindo. –Nope, that is not
working.
-No,
go away, let me sleep! –praguejei ensonada e atirando a fronha que o atingiu
mesmo na cara. Em tom de contra-ataque destapou-me por completo, deixando-me a
espernear. –Shannon!
-Rita,
come on! Do you really want the hard way? –ameaçou. Acenei afirmativamente,
mudando de posição. Feita a minha escolha, ele não teve alternativa a atacar-me
com cócegas até me deixar sem ar.
-Ok,
ok, you won! –cedi por fim, sentando-me a recuperar o fôlego.
-Breakfast! –anunciou,
pousando-me o tabuleiro no colo. –I cooked it!
-You what? –detive a torrada
que estava quase a levar à boca, zombando.
-Shut up, you won’t die because of it! –gracejou. Pousei o pão de imediato e
mirei a parede. –Oh, I didn’t mean to say that, I... I’m sorry, I’m such na
idiot! –procurou o meu olhar, apercebendo-se do que tinha dito sem querer.
Engoli o café de uma só vez.
-It’s ok, don’t worry. It’s not your fault but death is a motherfucking bitch!
-It is!
-Posso? –bateu David à porta,
entrando lentamente.
-Sim, diz. –assenti.
-Olha, o pai vai agora e eu
vou com ele. Vocês vão lá ter depois?
-Ainda tenho de me arranjar.
–suspirei. –A que horas é a missa?
-Às dez e meia.
-Ok, nós vamos lá ter.
-Até já! –saiu. Assemelhava-se
a um autêntico corvo. De preto do casaco às sapatilhas, com o cabelo
encaracolado que lhe cobria as orelhas.
-We have to be there at half-past ten. Damn it, I hate these religious
things. To be honest I don’t even believe them. –resmunguei mirando o
guarda-roupa.
-I know you don’t but you father does, so...
-Yeah, I know. –peguei numas
calças de ganga azul-escuro forte, numa camisola preta e pousei-as sobre a cama
por fazer. Terminei a torrada sem vontade alguma e fui tomar um duche rápido.
Partimos os dois para a
igreja, calados, de mão dada. Não me apetecia falar, pensar, ver ninguém.
Quando entrámos, o templo
estava já quase completo. Avançámos lentamente até à fila da frente, perante os
olhares atentos de pena e tristeza que nos lançavam os presentes. Os nossos
passos ecoavam gravemente, contrastando com os murmúrios e lamúrias que se
ouviam.
Ali estava a urna coberta de
flores e arranjos, mesmo à minha frente, fechada. Tinha vontade de abri-la mas
tal não era possível.
Os vidros altos e estreitos
chegava-nos alguma luz natural, mas pouca, que batia nas paredes escurecidas
pelo tempo e que ninguém mandava recuperar. Respirava-se um ar tépido e húmido
e sentia-se o odor das velas amareladas que eram consumidas pelas chamas
minúsculas.
-Rita?
-Mafalda? –levantei-me e
abracei a rapariga que me chamara, comovida. Uma amiga de infância.
-Quando me contaram nem queria
acreditar! Coitadinha da tua mãe, parece mentira!
-Antes fosse... –opinei.
Afastou-se na direção do meu irmão.
-Oh Rita, se precisares de
alguma já sabes, sim? –disse-me Margarida que se encontrava mais atrás de
Mafalda. Abraçou-me também.
-Eu sei, obrigada. –agradeci,
acenando. Mais pessoas vieram à nossa beira até ao começo da cerimónia. Desde
amigos a vizinhos e a gente nunca esperaria que fosse. Algumas surpresas
agradáveis, devo dizer. Outras que preferia que não tivessem aparecido. Enfim,
outras histórias que nem vale a pena contar.
A missa não demorou muito
tempo. Foi feito o discurso habitual. No final as pessoas começaram a deslocar-se
para o exterior onde aguardariam pela passagem do caixão e depois tomariam os
seus carros rumo ao cemitério que ainda ficava longe.
Lá dentro ficámos apenas nós
os quatro. O meu pai e o David levantaram-se e aproximaram-se da urna,
olhando-a estáticos. Mantive-me imóvel, junto a Shannon.
-Don’t you want to go there?
-No. It feels like if I stay here she won’t go away… -devolvi serena, de
braços cruzados e olhar fixo no degrau do altar.
-Podemos? –pediu um
funcionário da agência funerária que se encontrava junto dos colegas, prontos
para transportar a minha mãe.
-Não, um minuto, por favor!
–contrariei. Pus-me de pé. Mirei o caixão algum tempo e saí apressadamente com
o baterista que correu para mim e me abraçou, já na rua.
A urna não demorou a aparecer,
pesarosa e numa saída dramática. Virei a cara contra o ombro do meu namorado e
tapei a boca, sofrendo em silêncio.
-“Shuu”, It’s ok, I’m right
here. –sossegou o músico também emocionado. Conteve-se por mim.
Seguimos para aquela que seria
a última morada da minha progenitora na carrinha funerária, juntamente com o
meu pai e irmão.
Durante aqueles longos minutos
senti-me estranha, sem força para nada. Parecia que o meu corpo pesava
toneladas. Queria fechar os olhos e só acordar passado bastante tempo, quando o
que estava a viver fosse só uma memória distante que já não custasse, que já
não doesse como uma ferida aberta que me consumia o corpo e devorava a alma.
As curvas pareciam mais
apertadas, os solavancos normais mais agressivos e o caminho mais longo. Deitei
a cabeça no ombro de Shannon de deixei-me ficar. Afagou-me o cabelo
delicadamente.
Chegados ao destino, o veículo
estacionou sobre o pavimento alcatroado. Na nossa frente estavam dispostos dois
cedros antigos, ladeando o portão de ferro pintado, alto e severo que encerrava
assim os muros caiados. Havia ainda canteiros de flores pequenas e frágeis, ali
despejadas à mercê dos ventos inconstantes.
Num suspiro profundo saí,
tendo sido seguida pelos demais.
Sentia uma brisa na cara.
Detive-me junto à entrada, muito direita e quieta e de olhar vazio, a aguardar
a tumba.
Tinha decidido manter-me
serena, calma e silenciosa por respeito ao meu pai mas estava a ser
insuportável. As pessoas passavam por mim, trajadas de luto para aquele que
seria o último “adeus” à minha mãe. Estes pensamentos invadiram-me e senti-me
prestes a vacilar. Aí apertei a mão do “Leto mais velho” com tanta força quanta
tinha. É provável que o tenha magoado mas não disse nada. Com a outra mão
agarrei fortemente o triad necklace que trazia ao pescoço numa tentativa de me acalmar
mas sem efeito.
-It’s the end, here today. It’s
her end… -murmurei ao Americano quando a “caixa” passou por nós.
-It’s not. It’s the end of one journey but the beginning of a new one. From
now on, she’ll live deep in your heart and it’s your mission to keep her alive!
–discursou ele pausadamente. –Come on! –entrámos pesadamente, juntando-nos
assim ao círculo de gente recém-formado junto da cova aberta.
O padre começou a proferir
então a dissertação final. Senti um terrível nó na garganta que não me deixava
engolir e o estômago às voltas.
Abracei-me a David de olhos
fechados quando começaram a descer o caixão até às profundezas do mundo.
Os presentes acabaram por
abandonar o local, num clima de angústia, de perda, de lástima.
O meu pai, de olhos inchados
pelo choro, aproximou-se e despediu-se, dizendo algo que não fui capaz de
descodificar. Saiu perturbado. Agarrei-me a Shannon para que o meu irmão se
pudesse despedir igualmente.
Quando chegou a minha vez, ajoelhei-me
e tirei da mala a carteira, abrindo-a na zona das fotografias. Sentia as
lágrimas a correrem sem parar.
-Oh mãe... quem me dera ter-te
dito tanta coisa que não disse. Desculpa por ter sido tantas vezes uma completa
idiota contigo, por te ter dito coisas que não devia e que não sentia! Desculpa
por tudo! Quem me dera voltar atrás e mudar as coisas! Vais fazer-me tanta,
tanta falta! –parei e comecei a soluçar enquanto observava uma fotografia minha
de bebé, com um sorriso inocente de criança feliz na companhia dos pais.
–Costumavas dizer que eu era o teu bebé e que por ti nunca te separavas de
mim... Já não sou um bebé mas também não me queria separar de ti! Não assim! –dito
isto, tirei a fotografia, apertei-a contra o peito e ergui-me. Já de pé,
dei-lhe um beijo longo lancei-a para cima de uma rosa que David havia atirado
anteriormente. –Adeus mãe! –posto isto, os funcionários começaram a cobrir tudo
de terra. Abandonei o local desfeita em mil pedaços como um copo frágil que
embate no mosaico gelado e se desfaz em bocadinhos.
Regressámos a casa num
ambiente pesado e triste. Lá parecia que até as paredes e os móveis sabiam que
a minha mãe havia partido... para não mais voltar!